10 de ago. de 2005

Memórias I

Como Vai?
"Mei" de 2002

Em mais uma caminhada na rua, encontramos aquele velho amigo e dizemos "oi", "olá", as introduções básicas de conversação que a boa educação de nossa mãe nos ensinou. Mas, salvo raras ocasiões, a segunda pergunta é quase automática. "Como vai", "e aí", "cuméquicetá" e coisas do gênero, perguntam.

Paro e penso no sentido real dessa pergunta. Muitas vezes, ela pode ser o início da conversa, um assunto inicial para que o diálogo em si se desenvolva enrolando-se e desenrolando-se em outros assuntos, como uma esfera perfeitamente esférica, rolando em um campo de dunas de modo que a sua direção nunca pode ser conhecida com antecedência; outras vezes, a pergunta é simplesmente um complemento da introdução "oi" e seus afins, de modo que rapidamente o assunto se desenvolve para outro plano, dando àquela pergunta uma conotação mínima de importância, rebaixando o estado de espírito do interlocutor a nada.

Dessa forma, o ato de perguntar "como vai", para muita gente, não passa de um simples gesto de educação. E, como educação em resposta, a resposta é quase sempre "sim, obrigado", mesmo que esse "sim" - ou até mesmo o "obrigado" - seja a maior mentira que alguém no mundo poderia contar, tão mentirosa que estaria escrito numa placa no meio da rua: "ele está mentindo". Várias vezes surpreendi a mim mesmo, quando me perguntavam. "Hmm... bem, mais ou menos."

Penso nisso hoje, e pode ser que amanhã, quando você me encontre e pergunte, sem perceber, como estou, eu responda, também sem perceber, que estou bem, e a conversa ruma para uma terra distante. Mas se você me perguntasse agora como estou, eu responderia. Responderia da maneira correta. Responderia achando que você me perguntou realmente querendo saber como estou. E eu poderia me alongar até que o dia virasse dia de novo, até que a lua cheia se encha.

Eu responderia que eu me sinto como um guerreiro sem armadura e sem roupas, amaldiçoado por um doença terrível e dolorosa, encurralado num campo de batalhas de onde arqueiros atiram flechas de cura de todos os lados, tendo que me desviar da dor de recebê-las, para escolher a dor da doença; ou tendo que abrir meus braços e ser atingido por elas de peito aberto, para que a dor não mais se prolongue.

Também responderia que me sentia como alguém que passa mal no alto de uma montanha russa aquática infinita, acíclica, que jamais se repete; a cada descida vertiginosa eu me afundaria no mar, tentando de todas as formas lavar-me da sujeira que me pregava, mas ao mesmo tempo me afogando, desejando subir; a cada chegada ao topo, o embrulho no estômago estava pronto para ser entregue, e eu queria descer, para não mais me sujar.

E também responderia que me sentia um vagalume gigante, que possui uma luz infinita que contamina tudo à sua volta, iluminando cada folhinha de grama, cada poeira do ar, trazendo cor e alegria involuntariamente; mas, ao mesmo tempo, cansado de bater asas, prestes a cair por terra, sem que a luz se apague, dormindo numa escuridão interna profunda e sonolenta.

E também responderia de várias outras formas, se o mundo pudesse parar para que eu me consertasse.

E isso seria só a parte de fora.

A parte de dentro, ah sim! Essa sim é digna de canções élficas! Pois eu poderia me alongar muito mais do que na parte de fora, e poderia dizer que, por dentro, gritava lágrimas secas de meu coração, e isso teria uma semântica perfeita, pois não tem sentido nenhum. Poderia dizer que choro lentamente, de maneira graciosa, trazendo até mesmo alegria para os que me conhecem intimamente: e isso seria uma descrição exata, pois dessa maneira é que eu não me sinto. E diria que meus olhos dizem por mim, quando na verdade um simples olhar para o chão pode refletir tanto um dia cansado de trabalho, como uma tristeza profunda e ainda uma coceira no dedão do pé.

E a parte de dentro ficaria assim, sem sentido, vaga, estranha. Incompleta. Incompleta porque eu não a deixo completar: EU não a deixo, porque assim o escolhi. Sim, sim, é possível completá-la, mas eu não o quero. E assim, a parte de dentro fica quieta e ardente, aguada e fervendo, salgada e amarga.

E eu não mais me prolongaria na parte de dentro, pois todo o tempo do universo seria insuficiente para o dilúvio léxico no qual eu me afundaria, tentando passar a você uma vaga idéia do que eu realmente NÃO estava sentindo ali.

Então, da próxima vez que me perguntares se estou bem, não o reprimirei por exercer sua educação comigo. Porém, se quiseres realmente saber, então não pergunte. Não me olhe nos olhos, tentando adivinhar. Não olhe a direção das minhas sobrancelhas ou a frequência de meu resfolegar, querendo descobrir. Apenas pare... e ouça o meu coração dizer.

Ouça-o dizer bobagens, pois é o que se diz quando se ama.

Ouça-o dizer carinhos, pois é o que se quer fazer à pessoa amada.

Ouça-o dizer difamações, pois é o que se faz quando se tenta reduzir o amor a palavras.

Ouça-o dizer tudo, porque na verdade ele só diz uma coisa: eu amo, eu amo, eu TE amo. E é só.

Não o deixe te confundir com metáforas mirabolantes de montanhas russas e flechas de cura.

Não o deixe te confundir com respostas prolongadas de perguntas educadas.

Mas, acima de tudo, não o deixe silenciar o seu coração, por muito falar e nada fazer. Grite. Grite, pois é o que meu coração fez durante toda a minha vida: gritar lágrimas secas.

E você, meu amor? Como vai?

3 comentários:

Anônimo disse...

ou, escreve uma coisa nova aê!
esse último texto já tem mais de uma semana!

Gude disse...

Afff... Tô sem inspiração. :)

Anônimo disse...

eu conheço, mas foi legal ler outra vez! :)