9 de mar. de 2010

Horbag Domenescu - Parte 3/4

Na véspera de meu décimo nono aniversário, meu pai e eu estávamos fazendo o desjejum. Havíamos voltado ao local daqueles incidentes do meu nascimento, o que deixou meu pai apreensivo. Quando perguntei o que havia de errado, ele me contou toda esta história que eu conto aqui. A minha avaliação inicial foi que realmente tudo foi um sonho, ou talvez meu pai tenha previsto o aparecimento do aventureiro naquela noite, enfim. Nada demais.

- Às vezes os deuses nos mandam sinais estranhos, pai.

- Você anda conversando muito com o conselheiro. O que sabe sobre os deuses?

- Muita coisa.

A cara dele não ficou menos carrancuda com o meu sorriso.

- Relaxa, pai. Não vai acontecer nada amanhã. Vamos, termine seu desjejum e vamos à plantação. Temos muito o que fazer hoje.

O dia transcorreu sem maiores problemas. No fim da tarde, voltávamos do trabalho, quando vi uma pequena peça de madeira no chão. Pensei ser um dos instrumentos da colheita, mas era um pequeno chicote. Bem parecido com o das histórias de meu pai. Resolvi esconder pra que meu pai não se desesperasse. É bem provável que tenha sido o mesmo que ele achou, e que perdeu naquela mesma noite chuvosa aqui. Ele devia estar enterrado ali por todos aqueles anos.

De qualquer forma, fiquei intrigado, pois era a prova de que não tinha sido um sonho. Bem, talvez o homem teria sido uma alucinação. Na árvore que meu pai havia mencionado não estava escrito nada, por isso simplesmente guardei aquele amuleto e o escondi. Mas pensei muito em tudo aquilo. Comecei a acreditar que eu era uma espécie de escolhido. Mas escolhido por quem? E porquê eu?

No dia seguinte, porém, acordei com um grito de terror. Meus pais já haviam saído da barraca e estavam ajoelhados no chão. Do lado deles, um corpo. Minha mãe chorava. Quando me aproximei, meu pai gritou:

- É o conselheiro! Ele foi ferido! Precisamos salvá-lo!

Nesse pequeno intervalo de tempo entre a fala de meu pai e a minha resposta, muita coisa se passou na minha cabeça.

Pensei nas invasões orcs que nos deixavam sempre feridos e com, pelo menos, umas três baixas. Mas eles nunca me atacavam diretamente.

Pensei nos meus melhores amigos, de infância, que morreram por desnutrição. Aparentemente a qualidade do nosso grão não era boa o bastante para nossa subsistência. Mas eu nunca fiquei fraco.

Ao contrário, todos na aldeia ficavam frequentemente. E morriam por causa dessas doenças. Mas eu nunca fiquei doente.

Pensei na filha do velho conselheiro, que havia sido atacada por uma cobra, e morreu com as veias todas altas e roxas. Uma visão horrível.

E, finalmente, lembrei do sofrimento que a minha mãe passou durante o meu nascimento.

Todos os fatos trágicos que já aconteceram com nossa aldeia...

Me lembrei também do que senti perante esses fatos todos, e como eu ia cada vez mais absorvendo aquilo, ao invés de sofrer como todos os outros. Pra mim, aquilo estava virando uma rotina, até que passei a achar normal e até necessário que aquelas provações acontecessem. Até que, por fim, admiti que eu realmente gostava de ver o sofrimento dos outros.

Quando voltei à realidade, em uma fração de segundo, eu já sabia que realmente havia sido escolhido por um deus que fazia as pessoas sofrerem. Uma deusa. Por Loviatar. O chicote de nove pontas, a profecia, o velho misterioso do dia do meu nascimento. Tudo fazia sentido. Ela havia me enviado uma mensagem clara naquele momento.

Era eu quem devia levar o sofrimento necessário aos outros. Era uma missão nobre.

Por isso, a resposta a meu pai foi fria.

- É o conselheiro! Ele foi ferido! Precisamos salvá-lo!

- Não, meu pai.

Meu pai não podia acreditar no que havia ouvido.

- O quê? Como pode dizer isso, meu filho? Não vê que ele foi ferido por uma lâmina?

- Os deuses não erram, pai. Se ele foi ferido, é porque os deuses quiseram. Todos têm sua carga de sofrimento.

Meu pai ficou em silêncio, apenas me olhando, estarrecido.

- Sacrifiquem-no de uma vez - disse uma voz atrás de mim. Virei-me e vi o verdadeiro motivo do estarrecimento do meu pai.

O velho da noite chuvosa se encontrava à minha frente com uma adaga banhada em sangue.

- Você... Você feriu o conselheiro! Vai pagar por isso! - avançou meu pai, mas eu o interrompi.

- Espere, pai. Não lute com esse homem. Ele é um mensageiro divino.

- Exatamente - retrucou o velho. - Lembra-se daquela noite? Sim. Este mesmo filho que agora o detém havia sido escolhido 19 anos atrás. Ele tem sorte de ter sido escolhido, normalmente os humanos é que vão atrás dos poderes dos deuses.

Calei-me e evitei o olhar poderoso de meu pai. Eu não podia negar aquilo.

- Sim, meu jovem. Você sabe que foi escolhido. Os números... O símbolo que você achou... O sofrimento de seus entes queridos. Tudo se encaixa. Loviatar sorriu para você.

Meu pai olhou assustado pra mim.

- Você... Você achou o símbolo? Aquilo é um símbolo sagrado? De um deus?

Nesse momento, eu hesitei. Teria aquele homem ferido o conselheiro para cumprir a profecia? Ou ele era simplesmente um homem mau e eu estava delirando? Não, tudo se encaixava bem demais para que fosse delírio...

Todos os aldeões já estavam reunidos àquela altura, olhando as estranhas cenas. Algumas mulheres estavam desesperadas.

Meu pai avançou novamente, e desta vez eu não consegui detê-lo.

- Não! De jeito nenhum! Tome isto, seu velho mentiroso!

- Não, pai!

(continua...)

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